Por: Marcia Belmiro | Carreira | 24 de dezembro de 2019
Contar histórias é mais que uma forma de comunicação: é uma forma de conexão poderosa entre pessoas. É isso que defende a contadora de histórias e KidCoach Flávia Gama. Flávia realizou um webinário com Marcia Belmiro, criadora do método KidCoaching. Nessa conversa, elas falaram sobre por que contar histórias, como acontece a elaboração psíquica das situações infantis por meio das histórias, o que fazer se você não tem “jeito” para contar histórias e outros assuntos que vão interessar a quem trabalha com crianças e quer ter um diferencial na sua abordagem cotidiana. Veja alguns trechos dessa conversa a seguir:
Compreensão além do nível cognitivo
“Por que a criança pede mil vezes a mesma história? Neste momento ela está elaborando emocionalmente e mentalmente alguma situação da própria vida: o medo de escuro, a dor pelo cachorro que morreu. É uma elaboração do conteúdo mental e emocional para se curar. Esse pedido não necessariamente vem de um interesse cognitivo, de gostar daquela história, é da ordem psíquica. É comum a criança ter fases de só querer a mesma história, e depois não pedi-la mais. Essa é sua forma de dizer ‘ok, já resolvi o que precisava aqui’.
Quando você conta a história com técnica, propiciando que a criança se envolva naquele universo, ela experimenta de um lugar seguro os sentimentos que o personagem sente – se permite sentir medo, raiva, enfrentar o perigo ou recuar, tal como acontece na trama.
Quando pede para repetir a história, a criança precisa se compreender mais um pouco. Essa compreensão geralmente não é racional, até porque nessa fase ainda não há a noção de que ‘eu elaborei um conteúdo que estava me incomodando’. Ela simplesmente experiencia, vive e ultrapassa aquilo que a afligia.”
Respeito à intimidade emocional da criança
“Quem conta deve se desprender do resultado que deseja, do que a criança ‘deve’ aprender com aquilo ou o que ‘deve’ elaborar. Não é preciso traduzir para a criança, não invada a intimidade emocional dela. Se ela quiser, vai te contar por conta própria o que está sentindo. Cada um vai tirar sua ‘moral da história’, ter suas próprias descobertas, conclusões e aprendizados individuais – inclusive os adultos.
Não fique pensando: ‘Será que fulano pediu essa história em que há um conflito porque ele está passando por algum conflito?’ Não necessariamente. O que existem são sensações que a criança experimentou em situações do cotidiano, e que o livro trouxe à tona. Sugiro que o contator se solte, se permita conectar-se com a sua criança interior e se surpreender com o que essa experiência pode trazer.”
História de livro x história inventada
“Quando você lê um livro, é preciso avaliar se está reforçando preconceitos, restringindo a visão de mundo da criança de alguma forma. É nossa função, como adultos, dar exemplos de tolerância. Tem histórias que repetem padrões antigos (como o machismo, por exemplo), que não fazem mais sentido hoje em dia. Sempre recomendo que os adultos leiam a história antes.
Quando não uso livro, as crianças podem criar as próprias imagens. Quando pergunto, no final, o que entenderam da história, sempre me surpreendo. Elas têm percepções sutis. Nesse momento criança está entendendo as emoções, desenvolvendo a inteligência emocional.
As histórias inventadas ficam muito mais ricas se forem interativas, tipo ‘e o que você acha que aconteceu nesse momento?’. A história cocriada estimula que a criança traga seus conteúdos e pensamentos, estimula a criatividade e a expressão própria. Essas histórias geram maior conexão pelo olho no olho.”
A formação de memórias afetivas
“Um estudo da Universidade de Stanford mapeou o cérebro de pessoas que contavam e de outras que ouviam histórias, e os pesquisadores constataram que nesse momento se acedem as mesmas áreas no cérebro de quem conta e de quem ouve.
A contação de histórias atua como formadora de memórias afetivas profundas. Se tem a presença genuína do adulto, a criança percebe isso. Nesse momento o adulto se despe da mochila pesada do ‘tem que’, desse papel de rigidez que costumamos interpretar o tempo todo, e a criança recebe isso como um momento de carinho.
Essa conexão do adulto com a criança gera produção de ocitocina, que promove bem-estar, auxiliando na diminuição da adrenalina e da ansiedade. A concorrência com as telas parece desleal hoje em dia, mas nenhuma tela supera a conexão humana. Essa forma de presença verdadeira fica tatuada no coração e na memória.”
“Não tenho talento pra contar histórias, e agora?”
“A insegurança é normal, mas contar histórias é uma habilidade que pode ser aprendida, com técnicas específicas para isso – de entonação de voz, de posicionamento fisionômico e corporal. Essas técnicas de storytelling não servem só para contar histórias, servem para transformar sua comunicação.”
Afinal, por que contar histórias?
“Contar histórias estimula a imaginação, a criatividade e apura a percepção do outro e de si mesmo, do ambiente em que se está inserido. Histórias não servem só para fazer a criança dormir, ou para rir e se divertir. Elas são poderosas ferramentas de conexão e transformação. Na nova BNCC (Base Nacional Comum Curricular) ensinar na escola habilidades socioemocionais é um tópico relevante, assim como é relevante na vida, já que somos, em essência, seres relacionais.
Para quem tem a formação em KidCoach, abre muitas portas em escolas ter também a formação em contador de histórias, é uma habilidade muito valorizada nas instituições.”