A importância do brincar livre na primeira infância
Por: Marcia Belmiro | Crianças | 10 de dezembro de 2019
No Brasil, a pressão por um ensino “forte” cresce a cada dia, e já atinge até a educação infantil. Na busca por acelerar o desenvolvimento de bebês e crianças pequenas, aproveitando a janela de aprendizado da primeira infância – fase em que o indivíduo gera mais conexões neurais do que em qualquer outro momento da vida –, pais sentem o tempo todo que estão “para trás” na comparação com os filhos dos outros, e consequentemente cobram isso da escola. É comum ser exigido que uma criança de 4 anos, por exemplo, saiba ler e escrever, quando teoricamente isso só deveria ser ensinado no 1º ano do ensino fundamental.
No entanto, vemos que países de primeiro mundo, como Suécia e Finlândia, vão no sentido contrário, abrindo cada vez mais espaço na grade curricular para o livre brincar, também chamado de brincadeira desestruturada. Mas o que isso significa? Livre brincar não é deixar a criança “solta”, exposta a riscos ou sem limites. Tampouco é uma opção para quando a educadora está sobrecarregada e quer um momento “tranquilo”. A brincadeira desestruturada é uma estratégia pedagógica estimulante, desafiadora e que gera muitos benefícios para crianças e adultos. O livre brincar é a brincadeira sem objetivo pré-determinado pelo adulto, sem “moral da história”, sem a necessidade de trabalhar uma capacidade cognitiva específica.
Brincadeira x atividade
Renata Meirelles, educadora e responsável pelo projeto Território do Brincar, define: “O brincar é o mecanismo que permite conectar-se com o que há de vivo dentro de si, dos outros e dos objetos. O brincar não pode ter um fim: ele é a própria vida se expressando. No entanto, vivemos em um mundo que valoriza o que é quantificável. E o brincar não se mede, não se avalia se aquela é ou não uma boa brincadeira. Qualquer brincar que não seja espontâneo deixa de ser brincadeira para se tornar atividade.”
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em 2018, vai ao encontro dessa descrição. Na área do site da BNCC que trata da educação infantil, consta o seguinte trecho:
“(…) a escola é, tradicionalmente, o lugar para promover o pensamento, a cognição, a reflexão, portanto, um lugar que requer disciplina, organização e silêncio. Nessa concepção de escola, só cabe a cabeça, o corpo, não. O corpo ocuparia outro lugar, estaria no âmbito privado, e, sendo assim, brincar, correr e movimentar-se seriam atividades que a família deveria proporcionar para a criança. (…) E se considerarmos que as famílias estão menores, que os quintais também foram reduzidos, e que as ruas e praças tornaram-se lugares hostis para as crianças, qual é então o lugar privilegiado para que a criança possa se socializar, interagir e brincar? (…) faz-se necessário que os espaços [de educação] sejam urgentemente ressignificados, a fim de garantir que as crianças possam brincar, investigar, correr, pesquisar, pois quanto mais lúdico, cuidadoso, acolhedor, propositivo e desafiador for o ambiente educacional maior será o desenvolvimento da criança.”
Perceber o mundo com todos os sentidos
Quando a criança tem à disposição espaço amplo, natureza e tempo de ócio e é observada por um adulto – em vez de ser tutelada por ele –, pode perceber o mundo com todos os sentidos, em vez de usar apenas visão e audição numa sala de aula fechada. Pode dar vazão a sua criatividade e curiosidade: subir nas árvores, criar mundos imaginários usando apenas objetos simples como pneus e caixas, ver os diferentes pássaros, correr, fazer barulho ou simplesmente ficar em silêncio, ouvindo os sons do entorno. Nesse processo, a criança elabora seus medos, ressignifica experiências, e a brincadeira cumpre sua função primordial, que é a de ser “fenômeno transicional na construção da autonomia e da identidade da criança”, de acordo com Winnicott.
“Desemparedar” a infância
O livre brincar é objeto de estudo de educadores como Lea Tiriba, que cunhou o termo “desemparedamento”. No vídeo “Desemparedar as crianças na escola”, Lea explica sua importância especialmente na educação infantil: “Crianças são modos de expressão da natureza, mas a escola as trata como seres separados da natureza: pouco contato com o sol, presos entre quatro paredes por nove horas diárias na creche, pouco acesso à terra e à água. A criança fica na rodinha mas quer levantar, sair, andar. Olha para as crianças, aposta no que alegra e potencializa. Na definição das rotinas das creches, precisamos pensar em processos de formação nos quais haja espaço para o corpo, para o desejo, para a relação próxima com os elementos do mundo natural. Se não, estarei trabalhando na contramão daquilo que o humano necessita.”