Cama familiar: solução ou problema?

Cama familiar: solução ou problema?

Por: Marcia Belmiro | Crianças | 09 de maio de 2020

A cama familiar, ou cama compartilhada, é tema de muita polêmica entre especialistas. Há os que defendem (na psicanálise, por exemplo) que a criança deve ter seu espaço próprio de dormir desde pequena para se desenvolver saudavelmente. Outros, como os defensores da criação com apego, acreditam que dividir a cama com os pais não interfere negativamente na independência dos filhos.

Com a palavra, Marcia Belmiro:

Muitas pessoas me perguntam o que eu acho sobre a cama familiar. Depois de tudo que estudei a respeito do universo infantil, percebo que a criança tem uma necessidade de individuação, que acontece desde os primeiros momentos da vida. Se assim não fosse, ela permaneceria no ventre materno indefinidamente. Mas não, se o bebê fica mais que nove meses na barriga da mãe, ele morre. Física e biologicamente é assim que acontece na raça humana.

No aspecto psicológico é semelhante. É necessário que a criança faça o desligamento simbiótico psíquico da mãe para então desenvolver sua personalidade própria. O contato inicial entre mãe e filho, que se dá fundamentalmente na amamentação – quando se estabelece o contato olho no olho – gera uma conexão profunda, verdadeira.

Acrescido a isso há a prontidão do colo, a presença não só física, mas emocional da mãe, que sente a presença do bebê no colo e corresponde a essa presença por meio do afago, isso cria uma relação de confiança e de autoconfiança no bebê. Essa relação é ainda bastante simbiótica, mas já dá início a um distanciamento, visto que um olha para o outro – surge aí a sensação de que há, de fato, duas pessoas na relação.

E paulatinamente mãe e pai vão fazendo essa natural separação. Não há mais uma relação simbiótica, e a integralidade da existência da criança vai se constituindo como tal, ultrapassando a fase do não-eu (que é primeira fase da cisão), e caminhando na construção do eu da criança. Nesse aspecto, ter um espaço físico próprio que simboliza o espaço da criança auxilia imensamente nessa separação natural e necessária para a própria sobrevivência psíquica saudável da criança.

Assim como aos nove meses de gestação acontece o rompimento físico e biológico, por volta de 1 ano de idade esse rompimento psíquico (não como um processo doloroso, mas como um processo natural) auxilia a relação da criança consigo mesma, no encontro de sua própria existência.

Nesse ponto, a criança ter seu próprio berço ou cama, ter seu próprio quarto, mesmo que seja pequeno, faz essa distinção entre o eu e o não-eu. É simbólico, e no entanto útil e reforçador da constituição da criança. Essa é uma visão calcada na psicanálise e em outros estudos sobre a criança. A psicanalista Melanie Klein nos autoriza a dizer que essa separação precisa ser feita. E essa é a boa mãe, aquela que entrega o afeto, mas respeita a existência única e individual da criança, o que vai se refletir ao longo de toda a sua vida.

Na sociedade atual, a maioria dos pais e mães passam muitas horas fora de casa, trabalhando, para trazer o sustento para a família. Mesmo tendo a possibilidade de ter na casa um quarto para os filhos, decidem, muito carinhosamente, suprir sua ausência de um dia inteiro querendo estar fisicamente mais próximos dos filhos à noite. No entanto, os benefícios de a criança ter seu próprio espaço são proporcionalmente maiores do que o aconchego noturno.

A forma que os pais podem realmente suprir as próprias necessidades e as da criança de estabelecer uma proximidade física e emocional (e é bom que se diga que a proximidade física nem sempre supre a necessidade de proximidade emocional) é estar com o filho numa forma de diálogo no qual haja de verdade um ir e vir da palavra, de modo que os pais falam e também ouvem, integralmente, o ponto de vista da criança.

Ouvem a expressão infantil, fazem boas perguntas, estabelecem de verdade uma troca. E essa troca emocional é normalmente suprida por carinho, afagos, beijos, proximidade física também. E isso de fato traz um preenchimento na criança e nos pais. E assim, quando todos estão preenchidos física e emocionalmente, podem se despedir e ir cada um para o seu quarto na hora de dormir.

Quero voltar ao conceito de cisão biológica que ocorre quando a criança nasce. São nove meses dentro do éden materno. O momento do parto tem um impacto, tem dor. No entanto, é esse momento que dá a vida à criança. Levando essa lógica para a vida extrauterina, no aspecto psicológico é o momento da cisão que dá a vida – psiquicamente falando – à criança.

É necessário um rompimento para que seja criada a unidade, a individualidade. É um momento de solidão, que é parte integrante da essência humana. O ser humano pode ser empático, sentir junto com o outro, ser apoio ao outro, mas jamais será o outro. Não há como fazer essa mescla simbiótica, nem fisiológica ou psicológica.

A nossa essência é de solidão, de solitude, de estar consigo. E quão melhor preparamos a criança para estar consigo, estar no próprio eixo, lidar com próprio mundo e com seus próprios sentires (dor, alegria, prazer, descoberta, entendimento do mundo), mais estamos dando a ela condições de se haver com as situações que o mundo vai oferecer inevitavelmente.

E nem todas as situações serão fáceis, nem sempre haverá alguém que poderá dar esse apoio a não ser a própria pessoa, sendo seu próprio pai e sua própria mãe, se conduzindo diante das situações que a vida vai oferecer. Portanto é saudável dar à criança a oportunidade de começar a construir, desde bem cedo, a sensação de ser dono do seu próprio espaço, de sentir a dor da cisão, de precisar pedir algo e viver a sensação de não ser atendido imediatamente, porque o mundo não é assim, o mundo entrega no seu tempo.

Dar condições de a criança lidar com o princípio da realidade desde a mais tenra infância não é magoar nem ferir. Deixá-la no próprio quarto não é deixar de dar afeto – mas ao contrário – é dar a essa criança condições de se haver com sua própria essência humana.”

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