Um tapinha não dói? Palmada não educa, gera traumas e faz perpetuar o ciclo de violência

Um tapinha não dói? Palmada não educa, gera traumas e faz perpetuar o ciclo de violência

Por: Marcia Belmiro | Crianças | 26 de agosto de 2019

No Brasil, desde 2014 está em vigor a “Lei da Palmada”, que proíbe “o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como forma de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles [crianças e adolescentes], tratá-los, educá-los ou protegê-los”.

A lei está de acordo com associações de direitos humanos como a Global Initiative to End All Corporal Punishment of Children (Iniciativa Global para Acabar com Toda Punição Corporal de Crianças) e a Academia Americana de Pediatria. Esta organização, por sinal, classifica a prática como “ineficaz e prejudicial”, e aponta que “pode gerar um círculo vicioso de comportamento cada vez pior e punições cada vez mais severas”.

 

“Apanhei e estou vivo”

Ainda assim, há pais que acreditam estar fazendo um bem aos filhos aos dar uns “tapinhas” corretivos neles. A justificativa, em geral, é algo na linha de “na minha casa todos apanharam e ninguém morreu”. É possível compreender que em outras gerações não havia tanta informação quanto há atualmente a esse respeito, e que aqueles pais fizeram tudo o que estava a seu alcance para criar os filhos. A pergunta é: os pais de hoje que defendem os castigos físicos querem criar sobreviventes ou seres humanos saudáveis?

“Muita gente diz ‘eu apanhei e deu tudo certo’. Mas o que é ‘dar certo’? Como você se relaciona com as suas dores? E com as pessoas ao seu redor? Como se relaciona consigo mesmo quando você erra?”, questiona Elisama Santos, autora de Educação não violenta, em entrevista ao blog de Rita Lisauskas no site do Estadão. A escritora e educadora parental analisa: “Quando você bate em uma criança, mistura dois conceitos que nunca deveriam andar juntos: amor e violência.”

Um estudo feito na Universidade McGill, no Canadá, concluiu que os países que proíbem maus-tratos em crianças têm menores índices de violência juvenil. A pesquisa foi aplicada em escolas de 88 países entre 2003 e 2014. Mais de 400 mil jovens (meninas e meninos entre 11 e 25 anos) foram questionados sobre quantas vezes brigaram fisicamente com os outros.

Vinte dos países pesquisados não tinham proibição nenhuma em relação a maus-tratos; trinta proibiam castigos físicos em todos os contextos; e as outras 58 nações proibiam parcialmente (quando bater não é permitido na escola, mas sim em casa, por exemplo). A conclusão foi de que as brigas eram 31% menos comuns entre garotos e 58% menos frequentes entre garotas que moravam em países com proibição total de punição corporal em relação àqueles países em que apanhar era permitido total ou parcialmente.

 

A corda arrebenta do lado mais fraco

Nos Estados Unidos, o uso da palmatória é permitido por lei em escolas públicas de 19 dos 50 estados. Nas instituições particulares, há permissão em 48 estados. A Associação Americana de Psicologia afirma que castigos corporais podem levar a comportamento antissocial, agressividade e problemas de saúde mental nas crianças. Estudos produzidos naquele país afirmam que esse tipo de punição afeta desproporcionalmente estudantes negros e portadores de alguma deficiência, com dificuldade de aprendizado, autismo ou em cadeira de rodas.

No artigo “Maus-tratos na infância de mulheres vítimas de violência”, de Silva et al., fica clara a correlação entre meninas que sofreram castigos físicos quando eram crianças e que, na idade adulta, apanham (em geral dos próprios companheiros). “Em 619 questionários aplicados, os resultados indicaram uma elevada prevalência (39,7%) de história de violência familiar na infância e/ou adolescência de mulheres vítimas de violência na vida adulta. Concluiu-se que é importante e necessário identificar e assistir as famílias de risco, com o propósito de prevenir a prática de violência, haja vista a relevância da sua transmissão transgeracional. […] As várias formas de violência, sejam humilhações verbais ou agressões com risco de morte, tornam-se registros de experiências psíquicas que, não sendo elaboradas, transformam-se em um terreno fértil para o adoecer psíquico.”

Elisama Santos conclui: “Não é à toa que tanta gente se relaciona de maneira abusiva, de se olhar para uma pessoa que está sendo completamente abusiva com você e decretar: ‘mas ele me ama!’ A gente aprendeu isso na infância ao ouvir nossos pais dizerem ‘eu bati porque eu te amo’. Não é um discurso difícil de você levar para a vida adulta. […] a criança depende de você para absolutamente tudo, então ela não vai te odiar ao apanhar […], mas ela vai odiar quem ela é, [vai] crescer achando que é insuficiente, que é ruim.”

 

Fontes:

Santos, Elisama. Educação não violenta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13010.htm

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47622799

https://super.abril.com.br/comportamento/paises-que-proibem-a-palmada-sao-melhores-para-o-crescimento-das-criancas/

http://www.scielo.br/pdf/pe/v14n1/a15v14n1.pdf

https://bmjopen.bmj.com/content/8/9/e021616.full

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